Sobre a peça

O Mercador de Veneza confronta o que há de melhor e que há de pior na alma humana: tolerância , intolerância, usura, benemerência, amizade, vingança, interesse, paixão, romance e sublime poesia.
Enquadrada entre as comédias do bardo inglês, é uma peça peculiar, pois se desenrola de tal forma, que a dramaticidade impõe-se sobre o gracejo, e desvela seu sentido tragicômico. O enredo transita por duas óticas: de um lado o penhor de uma libra de carne,e o fio condutor romântico, o da escolha do noivo por meio de cofres de diferentes materiais e significados.
O Mercador de Veneza enfoca dois discursos que se frontalizam e onde as personagens não são passíveis de conciliação: Shylock, o judeu e Antônio, o mercador cristão, não nos permitindo, as mais das vezes, um distanciamento impessoal, pois Shakespeare consegue envolver entre as questões que permeiam a tragicomédia, os conflitos que moram no coração dos homens. Nos inquieta porque os princípios éticos e o contexto legal nem sempre se harmonizam e as razões e contra-razões se chocam num clima passional, excedendo-se a precariedade jurídica com a exercitação das palavras, das falsas verdades e das manipulações ideológicas.
O “Mercador de Veneza” e sua dialética de drama histórico, nos faz ver que a justiça que não é feita em seu momento preciso, gera injustiça e essa por sua vez torna-se vingança.


Outras Montagens de O Mercador de Veneza
O Mercador de Veneza está entre as peças mais montadas de Shakespeare em todo o mundo, tendo sido apresentada em todas as línguas do planeta. Numa pesquisa feita há alguns anos em Londres, ela ficou em terceiro lugar entre as peças do autor preferidas pelo publico, perdendo apenas para Hamlet e Romeu e Julieta. Grandes nomes já viveram as tramas da peça, entre eles o legendário ator Edmundo kean, Michael Redgrave, Laurence Olivier, Katherine Hepburn e Dustin Hoffman. Em 2004 houve uma versão cinematográfica da peça, dirigida por Michael Radford com Al Pacino, Joseph Finnes e Jeremy Irons no elenco. A história descrita na peça tem também inspirado diversos autores, como Ariano Suassuna em O Auto da Compadecida. Atualmente a peça encontra-se em cartaz na Broadway com Al Pacino em montagem ambientada nos Estados Unidos dos anos 40.


Origem da peça
por Bárbara Heliodora. **
“A trama de O Mercador de Veneza é o resultado da mistura de duas outras de origens diversas, mas dotadas ambas de fortes características de narrativas tradicionais como os contos de fadas ou os do folclore. Uma escolha a ser feita entre três opções, duas erradas e uma certa - e que tanto podem ser objetos quanto pessoas - tem sido apresentada em incontáveis manifestações com toda espécie de variantes, como por exemplo, O Amor de três laranjas, Cinderela ou as três irmãs de Rei Lear; mas a quase-totalidade do enredo tal como ele se apresenta nesta comédia, Shakespeare o encontrou na história de Gianetto em uma coletânea de novelle italianas intitulada Il Percorone, que foi escrita - ou talvez apenas organizada - por Ser Giovanni Fiorentino, escritor de quem não se conhece qualquer outra obra. Nesta fonte, no entanto, a prova da conquista da moça é apresentado sob a forma de o candidato agüentar uma noite inteira acordado, sendo que os dois primeiros são adormecidos com soníferos ministrados às escondidas; a variante com três arcas, por outro lado, o poeta pode ter tirado do poema Confesso Amantis, de John Gower, do Decameron, de Bocácio, ou da veneranda Gesta Romanorum, que nasceu no século XIV mas teve duas edições em inglês no século XVI.
A história do pagamento de uma dívida por meio de uma libra de carne também poderia ser encontrada em bom numero de fontes, sendo que ao menos duas seriam de fácil acesso para Shakespeare, a popular A Balada da Crueldade de Geruntus, que data de antes de 1590, e O Orador, uma coletânea de orações, dentre as quais se encontra a que leva o título de um judeu, que queria, por uma dívida, obter uma libra de carne de um cristão. “


Contexto Social
”A criação de O Mercador de Veneza, parece refletir com bastante precisão a forte onda de anti-semitismo que varreu Londres em 1593-94; Rodrigo Lopez, um judeu português que havia atingido a elevada posição de médico pessoal da rainha Elizabeth I, envolveu-se em uma complexa trama política (em torno de Portugal e não da Inglaterra) e acabou acusado de tomar parte de uma conspiração para assassinar a soberana. Hoje em dia há quase que total certeza de que a acusação feita a Lopez foi forjada, mas na época o clima ficou muito violento, e o médico judeu efetivamente foi enforcado em junho de 1594.”
“Durante o período da Segunda Guerra Mundial, Shylock foi interpretado como impressionante defensor da dignidade de sua raça, vitima de constantes perseguições de um cristianismo cruel.”
 
** Bárbara Heliodora é uma das maiores autoridades em Shakespeare no Brasil e é de sua autoria uma das melhores traduções da obra para a língua portuguesa. Os trechos acima são de seu livro, publicado pela editora Nova Fronteira em 1989.


Psicanálise

Muitos psicanalistas vêm em Shakespeare o verdadeiro precursor de Freud, e esta constatação evidencia a atração que até hoje suas figuras exercem.
FREUD foi tão longe em seus estudos sobre o Poeta, que em 1913, reúne dois textos para interpretá-los: O Mercador de Veneza e Rei Lear.
A situação, o mote literário da escolha dos candidatos de Porcia entre os três cofres, é examinado pelo psiquiatra que demonstrou sempre, um profundo conhecimento da obra do teatrólogo inglês, e nela captou elementos pra dissecar seu conteúdo psicanalítico, dele extraindo lições para seu métier.

anti-semitismo?
Reportando-se mais especificamente ao “Mercador de Veneza”, Harold Bloom (2000, p. 222) dele diz:

Somente um cego, surdo e mudo não constataria que a grandiosa e ambígua comédia Shakespeariana “O Mercador de Veneza” é uma obra profundamente anti-semita.
[...] Seria improvável que o próprio Shakespeare fosse anti-semita, mas Shylock é um daqueles personagens Shakespearianos que parecem transpor os limites das peças a que pertencem.

Lei, Direito e Justiça

Nesta ponte que buscamos estabelecer entre literatura, direito, filosofia, e hermenêutica, tende-se a responder a inquirições básicas, como os descompassos oriundos entre lei, direito e justiça, ligados a um tema que não é espúrio à filosofia nem ao Direito.

O Aspecto Racial

No Mercador de Veneza, as personagens de Antonio e Shylock representam, respectivamente, o julgamento do coração e o julgamento da mente. Trata-se de personagens simbólicos, que transportam traços característicos dos grupos a que pertencem. O seu conflito não é, pois, meramente pessoal, mas também racial e religioso. Conforme observa Ludwig Lewisohn, “problemas constante e aprofundadamente enraizados conferem a esta fábula um significado que não se esgota nela própria”. (T. Heline)

O Autor

William Shakespeare nasceu em Stratford-on-Avon, Inglaterra, no dia 23 de Abril de 1564 e morreu no mesmo lugar em 1616. Como o dramaturgo mais popular do mundo e gênio da humanidade,, nos desafia há mais de 400 anos a conhecer seus personagens míticos. O contador de histórias inglês, usou o teatro, meio de comunicação direto, para nossa recreação e reflexão. Nenhum autor na literatura gozou ou goza de tanto prestígio como William Shakespeare. As situações por ele retratadas passam pela ambição, poder, amor, avareza, velhice, ciúmes e racismo. Era profundo conhecedor da Bíblia, do Latim, do Grego, do Inglês, dos grandes pensadores renascentistas e das crônicas históricas. Casou-se aos 18 anos e teve 3 filhos. Em 1589 viajou sozinho para Londres e lá iniciou sua carreira de escritor. Escreveu dramas históricos, tragédias, comédias, obras líricas e inúmeros sonetos. Entre suas obras mais famosas estão Hamlet, Otelo, Rei Lear, Macbeth, Romeu e Julieta, A Megera Domada, Ricardo III, Sonho de Uma Noite de Verão, A Tempestade, O Mercador de Veneza e Henrique IV.


MACHADO DE ASSIS (apud NUNES & NUNES, 1989, p. 16) explica o poder literário que o poeta inglês exerce ainda em nossos dias: “um dia, quando já não houver Império Britânico nem República norte-americana, haverá Shakespeare; quando se não falar inglês, falar-se-á Shakespeare” e em JULIÁN MARÍAS (1977, p. 179) se encontra a resposta para o enigma William Shakespeare, quando ele diz: “Há quatrocentos anos William Shakespeare nascia, mas vive ainda hoje fragmentado nos mil dramas memoráveis, nos milhões de palavras que brilham como folhas, que resistem à morte e, juntas, recompõem o mistério de sua personalidade esquiva.”